Seco. É só o que sinto nesse momento. Está tudo muito seco. Minha boca, minha garganta, minha pele, minha torneira, tudo está seco. Soluço, soluço, soluço. E tudo fica ainda mais seco. Também não tem água na geladeira. Desço e vou ao bar em frente. Não tenho dinheiro. Seco. Pego fiado uma garrafa grande de coca e uma de Rum ordinário. Uma pequena vitória afinal, o Gersom nunca tinha pendurado nada pra mim. Pedi também um copo de água da bica para melhorar o soluço. 9 X 2 para a vida, sei que não tenho chance de virar esse jogo.
Não sou de beber Cuba Libre, muito menos às duas da tarde, mas hoje merece um porre. Estou a exatos sete dias sem beber, e ficaria mais hoje não fosse o acontecido. Pareceu-me uma boa homenagem. Comecei com Dreher a umas três horas, mas só tinha meia garrafa. Também não sou muito de Dreher, só tinha essa em casa porque alguém deixou. Essa foi outra homenagem.
Acordei com a notícia de que tinha morrido um conhecido. Não era grande coisa, eu não gostava tanto dele, enfim, era só um bêbado. Pessoas de minha alta consideração conviveram muito mais com ele e também não sentirão tanta falta. Mas ainda assim achei que merecia uma homenagem. Liguei para o Quito e dei a notícia. Ele também não achou grande coisa, mas disse que viria. Ele chegou logo depois que comprei o Rum, me encontrou bêbado e seco.
Ao velho cachaça, brindamos do primeiro ao último copo de Cuba. Secamos a garrafa e eu já estava bem torto. Quito queria fumar e tinha uma boa quantidade de erva, não sou muito de maconha, mas já que homenageava um pai morto, por que não dois. Pareceu-me uma boa homenagem.
Já havia anoitecido a muito tempo, eu não tinha mais dinheiro, nem o Quito. De fato não agüentaria beber mais nada. Começar com Dreher não é coisa que se faça e saia impune. Este ultimo pensamento me fez lembrar da morte do velho cachaceiro, não me pareceu uma morte tão estúpida. Um homem deve morrer de seus vícios e viver de suas virtudes, nunca o contrário. Sei que minha morte não será muito diferente, sinto que estou gastando minha saúde muito rápido e não devo agüentar muito tempo. Mas minha vida acredito que seja bem diferente, espero. O velho não deixou nada alem de bugigangas e algumas mágoas, e teve um enterro vazio e constrangedor. Ganhou mais dinheiro do que viveu. Pelo menos bebeu muito, já é alguma coisa.
Quando chegar meu dia, quero ser lembrado de forma oposta. Sei que não juntei muito dinheiro e a não ser que acerte a mega sena morrerei pobre. Também não fui muito bom em nada, nem mesmo bom. Considero sinceramente que a minha única virtude digna de comentário é que sou um bom amigo. Amei meus amigos durante toda minha vida e não pretendo mudar. Sempre deu certo. Não fui bem sucedido com as mulheres, e por mais que ainda não tenha desistido, já me conformei. Mas como amigo sou muito bom. Nisso e em beber cerveja. Um homem deve viver de suas virtudes e morrer de seus vícios, vivo de ter ainda alguns bons amigos e morrerei de tanto beber. Tenho trinta anos, e daqui a dez, no máximo, quero ser lembrado por isso.
Olho para o lado e o Quito esta dormindo, seu peito chia como um apito. Será que ele está tão seco quanto eu? Morrer deve ser assim: seco.